segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O “Bom” Nassau: um invasor muito genial

A pedidos [foram centenas!], publico a íntegra de meu artigo para a quarta edição [recém-lançada] da revista O Amarello, cujo tema é colonialismo.

Não me engano naqueles discursos – mui críticos da colonização portuguesa do Brasil – segundo os quais a cousa teria sido diferente [e melhor] acaso fôssemos uma ex-colônia holandesa, por exemplo. Diferente, é provável. Melhor… Não sei. Ou não estará aí o miserável Suriname, vizinho nosso, a nos pulguear a orelha?
Portanto, exercendo minha soberania [concessão, dirá meu nobre editor] sobre este território impresso, informo: o presente escrito não se destina a teses de supremacia de um projeto colonial em detrimento de outro, tampouco se lança a especulações sobre como nos teríamos quedado se – olha o se aí – a empresa holandesa no Nordeste afinal triunfasse. Ora ignoro – ou quero ignorar – os exércitos, as estratégias, os modelos de exploração [quais sejam, estabelecidos em maior ou menor pilhagem dos recursos nativos], o poderio econômico etc.; e desprezo apaixonadamente a noção de pátria e a ideia vulgar de nação. (Ressalvada, claro, a Nação Rubro-Negra). Portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses, assim, de modo geral, os colonizadores!, eles pouco me importam e eu os descarto solenemente.

Meu interesse é personalista e se detém a uma só figura – razão fundamental deste texto: João Maurício de Nassau-Siegen [Johann Moritz von Nassau-Siegen], o conde alemão que, contratado pela Companhia das Índias Ocidentais neerlandesas para governar o Brasil Holandês, chegou a Recife em 1637 e ali fundou sua ambiciosa Cidade Maurícia [Mauritsstad].


A prova clamorosa do sucesso da empreitada de Maurício de Nassau no Nordeste e da força de permanência de sua influência cultural-afetiva junto à população do Recife está, entretanto, no desaparecimento – quase imediato – de seu legado arquitetônico. É sintomático e curioso... Dispostos a apagar – sem vestígios – qualquer marca que remetesse ao período de dominação neerlandesa, os portugueses, ato contínuo à expulsão dos “invasores”, destruíram, de forma consciente, tudo quanto fora erguido pelos holandeses.

E não foram poucas as obras de engenharia encomendadas por Nassau, por meio das quais, de resto, disseminava os valores de sua formação protestante: com a pretensão declarada de transformar Recife em uma capital moderna e dinâmica, investiu na construção de Mauritsstad, cujos traçados urbanísticos ainda conformam os atuais bairros de Santo Antônio e São José, aterrou áreas alagadiças, drenou terrenos, abriu canais, construiu diques, ergueu pontes etc. Para si, mandou edificar dois palácios, Friburgo e Boa Vista, os quais cercou de monumentais jardins que, por sua vez, continham jardins botânicos e zoológicos.

Tudo isso – salvo uma ou outra ruína – perdeu-se. Não fosse a arte, sempre ela, e nada teríamos de material – de físico, concreto, palpável, visível – sobre os quase sete anos de governança de Nassau no Nordeste. É espantoso; milagroso – eu diria. Tudo foi ao chão, prédios inteiros, sólidos edifícios, frondosos palácios; e hoje, improvavelmente, são os desenhos e as pinturas de artistas viajantes os únicos guardiões daquele tempo; os derradeiros heróis ilustrados, senhores daquela história.


Jamais me parecerá pouco que um colonizador – um “invasor”, comandante frio de um exército acostumado a guerras e conquistas – tivesse a preocupação de contratar para sua comitiva, em pleno século XVII, um grupo de artistas; e isso com a clara intenção de documentar, para si, os cenários e os povos do Brasil.

Quando ouço alguém exaltar a de fato extraordinária Missão Francesa de Dom João VI – que, em 1816, fez vir ao Rio de Janeiro artistas como Debret, Taunay e Grandjean de Montigny, entre outros –, sempre me pergunto, sempre deslumbrado, sempre instigado: e Nassau, meu deus?; o que dizer da iniciativa de Maurício de Nassau!?

Sim, é evidente que havia muito de vaidade naquilo. O conde, cultíssimo, ao mesmo tempo bem-relacionado e ambicioso, não estava alheio aos costumes da aristocracia europeia, cujos gostos então já se voltavam para as artes, compreendidas também como um símbolo de status; e era natural que desejasse constituir uma coleção própria e, mesmo, acumular bens culturais para, num futuro incerto, presentear poderosos e lhes colher a proteção e as benesses.

Mas e daí?

Nassau era, antes de tudo, um amante das artes. Enquanto esteve no Brasil, entre 1637 e 1643, e a partir das poucas notícias de que dispomos sobre seus palácios em Mauritsstad, aventa-se que telas de Frans Post e Albert Eckhout lhes tenham decorado – com destaque – os salões mais importantes. Sabe-se que esses artistas eram então tratados com as melhores deferências e distinguidos – algo ainda incomum – como membros especiais daquela corte, e que almoçavam e jantavam à mesa do conde. Eram muito bem remunerados e, ainda que tivessem obrigações artísticas contratuais a cumprir, estimulados a produzir livremente e providos de todas as facilidades para tanto.

A ideia do mecenas moderno – o homem poderoso, hoje comum, quase banal, que financia criações artísticas generosamente – tem em Maurício de Nassau um de seus mais relevantes fundadores. E isso – repito – na década de 1640!


Venho de me dedicar longamente – por quase um ano – ao catálogo raisonné do pintor Albert Eckhout. Já conhecia a obra completa de Frans Post – publicada, com sucesso, pela editora em que trabalho – e era, como se nota, antigo admirador e entusiasta de Nassau. Sabia, porém, muito pouco de Eckhout.

Apesar das belíssimas paisagens de Post, creio [hoje posso afirmar] que nenhuma obra representa melhor o período holandês no Brasil e, portanto, as pretensões intelectuais de Nassau e o modo como compreendia e se relacionava com as culturas aqui de súbito reunidas que a de Eckhout; e isso por um motivo simples: ele foi o retratista oficial daquela corte e, com fabulosa originalidade e inegável habilidade técnica, pintou alguns óleos cuja observação é impactante mesmo para os padrões visuais correntes, e que representam e documentam um momento muito peculiar de transformação. Mais do que retratos das gentes, dos brasileiros, dos índios, dos negros, dos mestiços – o que, por si só, já significaria uma inovação espetacular –, são retratos do encontro entre esses povos, e se carregam de todas as consequências imediatas disto.

Que se tenha em precisa conta sempre o seguinte: Frans Post e Albert Eckhout foram os primeiros pintores viajantes que retrataram o Brasil; os pioneiros. É evidente, pois, que criaram sob um olhar condicionado, certamente contaminado pela busca do exótico e em perfeita consonância com a visão eurocêntrica segunda a qual tudo quanto estivesse do outro lado do Atlântico seria excêntrico e genericamente definido por Novo Mundo.

Uma vez que fosse o retratista de Nassau e que se dedicasse especialmente a representar as gentes recém-chegadas que compunham a novíssima população brasileira, é em Eckhout – no trabalho deste pintor – que se revelam de maneira mais candente os preconceitos, as tensões e as expectativas daqueles encontros.

Aqui, vou me dedicar, brevemente, à Mulher africana do artista, este monumento à sexualidade e à fertilidade ou, mais formalmente, à interação entre as gentes e à fluidez entre os limites étnicos; quadro que avalio ser uma obra prima. Afora o fato de que a figura seja a precursora – ainda não reconhecida e valorizada – do modelo de silicone em voga nos seios [prestes a explodir] de algumas moças da tevê, representa, por meio de seu corpo vigoroso, mas, também, de suas [breves] vestes e adereços, e do panorama de fundo, a reunião idealizada de vários povos do planeta em um ambiente tropical, e simboliza, de uma maneira não menos fantasiosa, o projeto colonial de Mauricio de Nassau e o jeito pacífico, ameno, miscigenado, firme mas discreto, como desejava impor o seu domínio. (Tudo seria maravilhoso, nas desde que sob seu controle).


Trata-se – não nos esqueçamos – de uma negra africana e, pois, de uma escrava. Tal qual Eckhout, no entanto, ela é igualmente estrangeira – o que os aproxima. A composição da tela é, como se diz, “uma viagem”, e agrupa, por exemplo, num litoral claramente brasileiro [em que índios pescam à praia], um cesto transbordante de frutos tropicais, uma saia e um chapéu africanos característicos e um cachimbo tipicamente europeu, assim como podem ser também classificados os brincos e o colar de pérolas burgueses.

O conjunto resulta numa saborosa mistura – francamente artificial – de elementos de diversas partes do mundo, espécie de Epcot Center da época, que se destinaria, especulemos, a forjar a identidade cultural do futuro sob as rédeas dos holandeses e, especificamente, de Nassau. A criança do quadro, o filho, ouso dizer, indica – nada a ver com o norte malicioso que dá à espiga de milho – este porvir de dupla nacionalidade harmônica, ao segurar o cereal, próprio às Américas, e o pássaro identificado como a “ave do amor africana”. Era a paz – a união – permitida e estimulada pela generosa matriarca da humanidade, a Sra. Europa, e concedida, como uma graça, pelo Governador-Geral, o conde Maurício de Nassau.


Estou entre aqueles que consideram que os maiores personagens históricos brasileiros só logram de fato a grandeza quando enfim homenageados por um enredo de escola de samba carioca. É verdade que nem sempre funciona, como nos lembram os desfiles que reverenciaram figuras como Beto Carrero, Chico Recarey etc. Exceções terríveis que confirmam a deliciosa regra.

Nassau, não obstante fosse o “invasor” e, logo, o inimigo, aquele que desafiou a ordem portuguesa e o orgulho da tradição conquistadora lusa, brilhou, direta ou indiretamente, em dezenas de enredos que cruzaram a passarela ao longo das décadas – os do Império Serrano em 1959 e 1968, o da Vila Isabel em 1972 [obra de Martinho da Vila, que, aliás, refere-se ao conde, com imensa felicidade, como “Bom Nassau”], o da Beija Flor em 1982, o da São Clemente em 2004, entre outros – e que resultaram em alguns sambas memoráveis.

Ao menos um deles é supremo: aquele – “Pernambuco, Leão do Norte”, de Silas de Oliveira – com que o Império Serrano foi vice-campeão do carnaval de 1968. Trata-se de uma letra concebida sob a visão dos portugueses, dos vencedores, e que dignifica a luta daqueles que expulsaram os holandeses e restabeleceram o controle patrício do Nordeste. No entanto, a despeito do tom de glorificação à reconquista triunfal, o samba-enredo, bem a seu início, reconhece e distingue – num verso tão curto quanto elegante – o nome e a honra de Nassau:

“Esta admirável página
Que o passado deixou
Enaltece a nossa raça
Disse um famoso escritor
Que Maurício de Nassau
Na verdade foi um invasor
Muito genial (...)”

Não poderia ser mais justo.

["O 'bom' Nassau: um invasor muito genial"; O Amarello #4, 2010].

7 comentários:

Blog do Pian disse...

Que bom que você publicou aqui esse texto.

R.Pian

Carlos Andreazza disse...

Eu só o publiquei, Bom Pian, admito, para aliviar a minha barra por aqui e tentar, assim, minimizar o meu sumiço... Estou sem tempo! (Mas já-já volto)!

Blog do Pian disse...

Não dá para publicar o perfil do Freixo também?

Ou essa minha tentativa de convergência gratuita de mídia seria bloqueada por questões editoriais?

Olga disse...

Pian, os seus comentários (quase sempre precisos) estão incluídos na saudade (já imensa) que sinto do Tribuneiros.

Um forte abraço!

Carlos Andreazza disse...

Vou publicar, bom Pian. Quem sabe ainda nesta semana. (A revista, afinal, já foi recolhida).

Abraço!

C.

Blog do Pian disse...

Olga,

Sinto sua falta tambem.

Esperemos nosso escriba favorito voltar ao seu (nosso) ritmo para aniquilar nosso sentimento de nostalgia.

Enquanto isso, meu nobre Imperiano, eu lhe pergunto:

E a nossa festa em homenagem a Vinicius?

Vamos que vamos?

R.Pian

Carlos Andreazza disse...

Claro, Bom Pian. Afinal, "é preciso cantar!"