quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Votos

Este texto - Votos - foi publicado na sétima edição [dedicada ao tema "o que é para sempre"] do fanzine Amarello:


 
Num sábado recente, Carol cochilou no sofá enquanto víamos algo na televisão. Fechou os olhos, encolheu-se um pouco, de lado, posicionou a mão sob o queixo, para apoiar a cabeça – de um jeito delicado que é só dela – e repousou. Tive então, olhando para ela, uma sensação de grandeza, de segurança, de conforto, de paz. Respirei fundo, absolutamente deslumbrado... De repente, percebi, meu mundo estava todo ali, nela, com ela, descansando, apaziguado, lindo, protegido, entregue, resolvido, reunido, intenso, puro, tão poderoso e ao mesmo tempo tão simples, tão humano; tão meu, tão nosso – e experimentei o sublime sentimento da completude, uma forma de eternidade, a sensação de que me bastava inteiro ali, com ela, para sempre: porque meu mundo, senhoras e senhores leitores deste ilustre fanzine, meu mundo é a Carol, meu mundo, meu máximo, meu melhor, onde sou melhor, onde vou além, onde posso; e tive então vontade de chorar, e de abraçá-la, e de acordá-la, de sacudi-la loucamente para declarar meu amor, de esmigalhá-la num abraço forte, desesperado, e de abrir a janela e gritar à cidade minha alegria, de rufar ao universo como a bateria do Império Serrano, de bradar aos vizinhos que ali estava um homem realizado, pleno, pronto e urgente para singrar e vencer os mares de uma vida a dois, e no entanto, quieto, comovido, zeloso, guardião, eu apenas a observei, admirado, minutos a fio, e fui completamente feliz.

Sou completamente feliz, assim como sói a quem ama e é amado, e grato – muito grato – por ter consciência deste amor.

Nas noites ansiosas que antecederam o dia em que nos casamos, ao longo das madrugadas anteriores àquele desejado dia, sempre encontrei o sono – a tranquilidade – pensando no modo como Carol descansou naquela tarde de sábado; pensando em que tudo que me interessava estava ali, tudo de que preciso, nos metros quadros de alcance do meu corpo; pensando em que as coisas são bem mais singelas e autênticas do que impõem a propaganda e a pressa; pensando em que, nos momentos difíceis do porvir, quando algo não der certo, sempre a terei, minha Carol, para dormir e despertar ao meu lado, para criar e recria um canto nosso, só nosso, para me oferecer uma palavra de carinho e incentivo, um longo abraço ou um frondoso sorriso, um beijo, e que é assim – desse jeito – que eu quero que nossa vida siga e se renove, de um jeito tão intimamente fabuloso quanto a imagem dela cochilando no sofá, com a mãozinha de princesa acomodando a cabeça; e ora agradeço pela graça de ter a mulher cujo amor me é ao mesmo tempo calor e sereno.

É nisto que acredito, senhoras e senhores leitores deste romântico fanzine, para sempre, por para sempre; é nisto que aposto, que me aposto, por horizonte, por fé, por fim, e amanhã ainda mais que hoje – mais, mais e mais: nos valores da família, na fortuna de ter amigos e no amor de minha Carol, na generosidade de minha Carol, no jeito dela, nos detalhes dela, na pele dela, no olhar verdadeiro dela, esta mulher cuja leveza rejuvenesce e dá norte à minha existência, ao meu universo.

É nisto que creio: em voltar para casa, para sempre, para ela.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Marina Silva: onde a farsa perdeu a modéstia

Atendendo aos incontáveis pedidos, lanço aqui a íntegra de meu artigo publicado na sexta edição do fanzine Amarello.


Do ponto de vista moral, não existe ex-petista. Contingências, certamente oportunistas, podem produzir um eventual solista, mas que jamais – jamais, enfatizo – negar-se-á ao coral por ocasião de um concerto decisivo. Portanto, se escreverei sobre Marina Silva, é mister que registre, a título de introdução, meu desprezo pela mentira – assaz influente – segundo a qual esta senhora teria deixado o PT inconformada com a corrupção no governo. Não mesmo! Ela foi ministra do Meio Ambiente desde a posse de Lula, em 2003, permaneceu no cargo até 2008, integrando o esforço [mui pouco republicano, diga-se] pela reeleição, e só se desligou do partido em 2009 – quatro anos após a quadrilha do “mensalão” ter sido denunciada.

(Se devemos, então, qualificar a posição de Marina Silva ante a roubalheira dos companheiros – e a não a ser que haja alguma modalidade de indignação com quatro anos de delay –, terá de ser algo entre a omissão e a solidariedade).

Marina saiu do Partido dos Trabalhadores porque queria – de qualquer jeito – disputar a Presidência da República em 2010, o que lhe seria negado, de maneira limpa [isso, claro, na medida possível ao PT], pelas instâncias partidárias; a rigor, pelas regras e métodos [o tal “centralismo democrático”; risos] que ela, fundadora da sigla, ajudou a estabelecer e dos quais, dona, ainda hoje, da legenda no Acre, sempre se beneficiou. Chego, pois, a um outro ponto relevante – um dos mais importantes deste texto: ou Marina Silva é a salvação da vida pública brasileira e símbolo divinal da redenção política do Brasil, ou muda de partido a cada contrariedade. (Mais: ou ela simboliza o progressismo nesta pátria tão crente, ou professa a fé evangélica e suas restrições neste país tão descolado).

Basta de mistificação.

Espanta-me poderosamente que em Marina Silva se revista de virtude o que nos outros é vício. Pergunto: nesta dança rasteira de cadeiras partidárias, o que a diferenciará, por exemplo, de um Ciro Gomes? A Lei Eleitoral, apesar das propostas de reforma política, ainda permite que esta senhora seja estandarte [avatar!] de si mesma, que troque de legenda sempre que amuada – mas isto não pode blindá-la de receber o tratamento dispensado aos mortais que fazem o mesmo. Ou o que é pernicioso tornar-se-á benfazejo apenas para ela? Ou o que é impostura nos outros se lhe transfigura em exclusiva decência?

(Quando foi, afinal, que a farsa perdeu a modéstia)?

Gilberto Kassab deixa o DEM e é um “fisiologista”, mais um maldito sem-ideologia etc. Ok. Justo. Ela, por sua vez, larga o PV, onde mal ficou dois anos, sai atirando na democracia representativa, e isto entretanto é compreendido e propagandeado – como é fácil ser Marina Silva no Brasil! – como demonstração sublime de “desencanto com o sistema político” e disposição quase beatificada por criar um “movimento suprapartidário que instale a política em novas bases”.

É isso mesmo?

Ah, por favor: vão plantar batatas numa área de preservação ambiental!

Esse papo de suprapartidarismo – esse discurso ONGuista para enganar milionário trouxa e sugar recursos estatais – seria muito bom [e eu o aceitarei como honesto] viesse acompanhado de uma renúncia às ambições político-eleitorais. Que tal, Marina Silva? Ficar, porém, gastando esse mimimi terceiro-setorista, que esculhamba as instituições republicanas [mas que não planta jaqueira sem dinheiro público], ao mesmo tempo em que se vale das fragilidades do sistema político para pular de galho em galho e disputar eleições sucessivas é embuste de resto mui desrespeitoso para com a inteligência alheia. À vera, ressalvado aquele blush de beterraba, o que distingue Marina Silva de Ciro Gomes ou de Gilberto Kassab é tão-somente a festiva [e sintomática] adesão de Caetano Veloso...

(Aliás, uma interrogação oportuna: em que seringal se perderam as relações do marido desta santa com aquela ONG amazônica tantas vezes acusada de contrabando de madeira)?

Tenho asco de políticos cuja principal bandeira consista na desqualificação – na criminalização – da política. Como assim? Marina Silva raptou a ética, a moralidade e os bons princípios assim como se sequestrasse carbono distraída... Ou se está com ela [e, ato contínuo, no reino da glória], ou se estará errado, condenado. Não dá! Esta senhora está aí há pelo menos trinta anos, petista histórica! [as pessoas têm orgulho disso, né?], faz pouco encerrou um mandato [medíocre, se me permitem] de Senadora da República, vem de concorrer à Presidência com votação significativa, e no entanto é capaz de atacar violentamente o Parlamento, que até anteontem integrava, porque este, cumprindo sua missão institucional e em consonância com a Constituição Federal, aprovou, após meses de tramitação, discussão e aperfeiçoamento, um texto de Código Florestal [equilibrado, exemplar, registre-se] que a desagradava, que contrariava seu estilo claudia-ohana de floresta.

Isto tem um nome, senhoras e senhores, a despeito de toda a propaganda de leveza: autoritarismo.

Minha repulsa intelectual por Marina Silva decorre do fato de que se posicione, desde que tomou voz no cenário público brasileiro, como encarnação de um tipo de [vá-lá...] ideologia – por ela nomeada “sonhática” – que se comporta e propaga, charmosamente, como “verdade natural”, absoluta, definitiva, superior, contra a qual, portanto, não cabe contestação.

Marina Silva é – traço fundamental dela – autoritária, intolerante, radical. Trata-se, petista moral que é, de uma política para quem a democracia é extraordinária até o momento em que crie embaraços a seu personalismo, à sua intolerância politicamente correta. Aí o tempo vira e ela, avessa ao debate, ao contraditório, ignorando as leis [que, afinal, são para os humanos], lança-se aos mais bárbaros discursos golpistas – mas tudo sempre com aquela placidez de quem não é deste mundo, de quem veio ungida da selva para nos salvar de nós mesmos, de quem sabe de algo que desconhecemos, de quem vê a luz, de quem está convencida de representar a sabedoria; de ser a sabedoria.

As instituições da República – seus poderes, pesos e contrapesos – existem também [resistem, ao menos por ora...] para equilibrar forças e limitar as ganas de gente iluminada como Lula e Marina Silva. (Uma sociedade que precisa desses profetas, desses mitos, desses seres abnegados e messiânicos é uma sociedade imatura, doente, frágil – gado cego para qualquer tocador aventureiro).

Com o primeiro no poder, sabemos bem como foi. (Ainda pagaremos, talvez já o paguemos – política, institucional e economicamente – pelo lulismo). Mas fico aqui imaginando como seria – pior, inacreditavelmente pior – um Brasil governado por Marina Silva.

Estou entre aqueles [os párias!] que consideram que este país tem reservas ambientais em excesso, bem mais que qualquer outra nação importante do mundo; e estou certo de que, conservado o que ora temos já demarcado, não precisamos sequer de um metro a mais de florestas – isso se quisermos responder às necessidades de nossa gente antes de aos anseios dos micos-leões-dourados.

Sou, com orgulho, pelo pleno desenvolvimento, pelas ousadas obras de infraestrutura, pela multiplicação das hidrelétricas, pela produção de riqueza, pela industrialização, pela geração de empregos formais no campo, pela valorização do agronegócio e das novas fronteiras agrícolas – verde intocável, pra mim, é só o que compõe a bandeira do glorioso Império Serrano –, de modo que, em oposição absoluta e incontornável, considero Marina Silva um completo equívoco, o próprio terceiro-mundismo, a mais perfeita definição do atraso, com o qual, de resto, logo se deparariam – e se frustrariam, assim como se decepcionaram os que esperavam de Lula a expropriação da propriedade privada [hahaha!] – aqueles que lhe projetassem o “desenvolvimento sustentável” como norte econômico.

Em que pese a competente propaganda de um entendimento equilibrado das necessidades do país, nos seis anos em que foi titular do Ministério do Meio Ambiente, esta senhora comportou-se com radicalismo – como entrave, como gesso, como agente do imobilismo; não como defensora dos bagres, mas como cabeça-de-bagre – sempre que confrontada com as premências do crescimento brasileiro, sempre que diante das demandas nacionais por energia e consumo. (Para se ter uma noção de quão errado alguém pode ser, foi no embate com ela que Dilma Rousseff esteve mais próxima de acertar)...

O discurso mais frequente de Marina Silva era – é – aquele que insistia [insiste ainda, com impressionante estupidez] em desqualificar – criminalizar, demonizar mesmo – o produtor rural, assim como se não fosse o agronegócio o maior responsável pela fartura de alimentos, pela comida barata na mesa do povo pobre e também pelos superávits comerciais recordes.

Num eventual e desastroso governo de Marina Silva, tenho dúvidas transamazônicas sobre se os bichinhos e as plantinhas do Brasil seriam de fato bem tratados. Estou certo, porém, de que as pessoas – os humanos! – gastaria mais [gastariam o dinheiro que não têm] para comprar arroz e feijão. Mas isso – claro – deve ser uma etapa libertadora rumo ao magérrimo desenvolvimento transcendental.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O talento é o transe

Abaixo vai, na íntegra, o texto que escrevi para edição #5 [que está uma beleza] do mui querido fanzine O Amarello, que desta vez teve por tema o transe. (Lançada em maio, já pode ser também encontrada no Rio de Janeiro, sempre gratuitamente, nos seguintes pontos: loja Isabela Capeto, Instituto Moreira Salles, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Unibanco Arteplex, galerias Luciana Caravello Arte Contemporânea e Anita Schwartz, Home Grown e padaria La Bicyclette).

Eu, que já colaborara para aos números dedicados ao medo [#3] e ao colonialismo [#4], tive de me desdobrar para explorar - afinal, muito pelo avesso - um assunto que, mais do que desconhecer, desprezo. Curiosamente, talvez pelo esforço de singrar um mar tormentoso, a cousa resultou bem - e me quedei satisfeito com o resultado, talvez meu melhor texto para O Amarello, original e de resto fidelíssimo às minhas crenças e, pois, à única forma possível de transe segundo Carlos Andreazza.


Conta-se que Pelé, antes de um match importante, costumava isolar-se a um canto do vestiário. Sozinho, em silêncio, era como se dormisse. (Pelé se afastava e todos já sabiam, todos respeitavam – alguns decerto que por pura e feliz conveniência: aquele momento de ausência do rei era prenúncio de presença decisiva adiante, ao rolar da bola, e garantia de “bicho” depois)... Uma hora antes do jogo, portanto, deitado por quinze ou vinte minutos, entregava-se, “apagava-se”. Dirão alguns que entrava em transe; e não terei mesmo como contestá-los.

Transe, sim; mas, que transe? – eis o meu ponto.

Pelé alcançava, estou de acordo, um outro estado de consciência; havia nele, com efeito, uma transição de intensidade cerebral, um deslocamento-fermentação de frequência mental, mas – atenção – não no sentido [vulgar, se o leitor me permite] consagrado e massacrado pelo senso comum: em vez de acercar-se do tal subconsciente [esta palavra tão cafetinada], de uma campo de transcendência espiritual quase divino [e cafona, se o leitor me permite novamente], largando-se, pois, à frouxidão egoísta do inconsciente [outro termo prostituído], aproximava-se – isto, sim – da concentração plena, da noção integral da própria existência, do domínio concreto da razão e do raciocínio, de uma espécie de consciência máxima, condicionando todo o corpo ao exclusivo controle do pensamento e apenas do pensamento.

Um transe produtivo! (Produtivo e generoso).

Em vez de perseguir o além [ou a mistificação, se preferir], escapando-se, distanciando-se [fugindo-se?], Pelé agrupava-se, centrava-se, equilibrava-se, domava-se, assumia-se, bancava-se, e doravante geria-regia o próprio corpo por meio da mais consistente – profunda, maravilhosa, deslumbrante, extasiante – lucidez.

(Questão de ordem; vênia máxima: em vez de menosprezarmos os engenhos do pensamento, deslumbrados que somos-estamos pela excentricidade oriental, por que não o elevarmos também à justa condição de sublime dom)?

O transe – ao menos o que me interessa [aquele em cuja existência acredito] – é apanágio e desdobramento prático do talento. Não está fora; mas bem dentro. Sem mistérios. E, apesar de claro-claríssimo, não é fácil; tampouco para qualquer um... (Ou a rapaziada andará pensando – concentrando-se – muito por aí)? O transe, este, humano, não excede ou extrapola; mas preenche, ocupa, mobiliza, vitaliza – dispõe e explora as possibilidades todas do corpo. (Glorificada seja a matéria!; louvada, a cultura ocidental)! O transe – resultado de um poderoso esforço de concentração – é coisa do homem, de um homem vivo, acordado, desperto, educado, informado, não raro genial [não raro Pelé], mas sempre homem. O transe – este que constrói e cria coisas belas e emocionantes – é conquista do homem, de seu autoconhecimento, de seus mecanismos de abstração, de seus instrumentos intelectuais e de sua capacidade de exercitar e mobilizar o pensamento, que submete o corpo e transcende em gols, em mil gols. (Ou em música ou em poesia ou em arquitetura etc.).

O talento é o transe. O transe é o talento. Tanto faz. Ambos são humanos, e ambos – atenção – pisam firme no chão.

Veja-se, por outro exemplo, Marisa Monte. Nem lhe sou especial fã, desgosto do que compõe, registre-se, mas lhe reconheço um talento raro para cantar. O leitor faça o seguinte exercício, por favor: procure um vídeo de uma entrevista da cantora e, em seguida, o de uma sua apresentação. Compare-os. São indivíduos – é incrível – distintos; são vozes outras! Como não? Ouça bem... É impressionante. Não fosse pela figura coincidente – é de fato Marisa Monte quem está ali, tanto na entrevista quanto no palco – e afirmaria sempre tratar-se de pessoas diferentes, de vozes diversas; porque ela, uma vez em ação, transfigura-se: a voz se transtorna, o timbre, a respiração, a divisão rítmica, o próprio gestual se altera, a maneira como se move... É um transe, inegavelmente um transe; mas nada transcendente, nada desligado do corpo, dos sentidos, da consciência etc., antes consequência de um talento formidável governado-condicionado pelo pensamento, pela concentração rigorosa, pelo treino, pela técnica, pelo domínio da técnica. É nisso que acredito; a rigor, no homem, nos homens – é nisso que acredito.

O transe resulta... Não é onanismo sob cobertas [cujo os méritos, infinitos e atemporais, não discuto], mas sensibilidade provocada, percepção aguçada, madura, que ganha curso, atividade, coletividade, que reproduz, que possui existência prática, finalidades, responsabilidades, expectativas e consequências não raro públicas. O transe entra em campo, em cena, sobe ao palco... Produz. É isso [esta cadeia orgânica, cotidiana] o que me compraz ante, por exemplo, a regência de um maestro: a dissolução de barreiras entre ele e a música, o modo fluente como o controle – racional, rígido – daquele ofício metódico deságua em leveza e enlevação; em arte. Como não ver transe ali, concentração e transe, consciência e transe, compromisso e transe, talento e transe, inspiração e transe, se o movimento da música logo é movimento do corpo e – por que não? – convulsão? (E o maestro – pasmem! – está acordado, atento, alerta; ligadíssimo)! (Oh)!

Estive uma vez – destinado a entrevistá-lo – na casa de um importante escritor brasileiro. Marcamos às 10h. Não nos conhecíamos, embora apresentados – tempos antes – por um amigo comum. Fui pontual. Toquei a campainha e ele mesmo, agitado e sem palavra, recebeu-me, sinalizando – com um gesto – para que o acompanhasse. Entramos então num escritório acanhado, apertado, sem janelas, com cheiro de charuto entalhado nas madeiras, e repleto de livros. (Uma biblioteca, ora, eventual tabacaria – e também uma possível definição de paraíso). Com novo sinal, e ainda sem palavra, indicou-me onde sentar, e lançou-se a uma outra cadeira, defronte a um computador castigado, de onde o podia ver de perfil. Estava transtornado, talvez que em meio a uma construção mental, quiçá lançado à engenharia de alguma frase-ideia; nunca saberei. Estava – isto, acima de qualquer especulação – poderosamente concentrado; em transe, como não?, batendo enfurecido nas teclas e – olhar injetado – perfeitamente ilhado a [em] si, onde e como, ignorando-me, a mim como ao mundo, permaneceu escrevendo, vidrado, por quase três horas, ao fim das quais, fitando-me, perguntou sorridente: “O senhor também é torcedor do Império Serrano, não?”

terça-feira, 31 de maio de 2011

Colégio São Bento

E o Colégio São Bento, hein?

Protegendo covardemente o aluno de cartorze anos que espancou [com o auxílio de cúmplices ainda mais protegidos] um de seis; isso sem mencionar o fato grotesco de que nenhum inspetor ou funcionário da escola surgiu para defender e/ou socorrer a vítima... (Leia a notícia aqui). Instituição asquerosa, de ambiente degradante e cultura moral omissa, que estimula a violência, a trapaça e a deslealdade entre crianças - e que, portanto, impõe a lembrança deste meu texto-memória de 2008:

AQUI

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Amarello #5

  

Será neste sábado [30 de abril], em São Paulo - vide o convite acima -, o lançamento da quinta edição do fanzine O Amarello, desta vez dedicado ao tema "transe". Sou um dos colaboradores, com um texto que pretende desconstruir a ideia convencional de transe como cousa do inconsciente. Acho que ficou bacana. Abaixo, um trecho:
(...) O transe – ao menos o que me interessa [aquele em cuja existência acredito] – é apanágio e desdobramento prático do talento. Não está fora; mas bem dentro. Sem mistérios. E, apesar de claro-claríssimo, não é fácil; tampouco para qualquer um... (Ou a rapaziada andará pensando – concentrando-se – muito por aí)? O transe, este, humano, não excede ou extrapola; mas preenche, ocupa, mobiliza, vitaliza – dispõe e explora as possibilidades todas do corpo. (Glorificada seja a matéria!; louvada, a cultura ocidental)! O transe – resultado de um poderoso esforço de concentração – é coisa do homem, de um homem vivo, acordado, desperto, educado, informado, não raro genial [não raro Pelé], mas sempre homem. O transe – este que constrói e cria coisas belas e emocionantes – é conquista do homem, de seu autoconhecimento, de seus mecanismos de abstração, de seus instrumentos intelectuais e de sua capacidade de exercitar e mobilizar o pensamento, que submete o corpo e transcende em gols, em mil gols. (Ou em música ou em poesia ou em arquitetura etc.). (...)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O “Bom” Nassau: um invasor muito genial

A pedidos [foram centenas!], publico a íntegra de meu artigo para a quarta edição [recém-lançada] da revista O Amarello, cujo tema é colonialismo.

Não me engano naqueles discursos – mui críticos da colonização portuguesa do Brasil – segundo os quais a cousa teria sido diferente [e melhor] acaso fôssemos uma ex-colônia holandesa, por exemplo. Diferente, é provável. Melhor… Não sei. Ou não estará aí o miserável Suriname, vizinho nosso, a nos pulguear a orelha?
Portanto, exercendo minha soberania [concessão, dirá meu nobre editor] sobre este território impresso, informo: o presente escrito não se destina a teses de supremacia de um projeto colonial em detrimento de outro, tampouco se lança a especulações sobre como nos teríamos quedado se – olha o se aí – a empresa holandesa no Nordeste afinal triunfasse. Ora ignoro – ou quero ignorar – os exércitos, as estratégias, os modelos de exploração [quais sejam, estabelecidos em maior ou menor pilhagem dos recursos nativos], o poderio econômico etc.; e desprezo apaixonadamente a noção de pátria e a ideia vulgar de nação. (Ressalvada, claro, a Nação Rubro-Negra). Portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses, assim, de modo geral, os colonizadores!, eles pouco me importam e eu os descarto solenemente.

Meu interesse é personalista e se detém a uma só figura – razão fundamental deste texto: João Maurício de Nassau-Siegen [Johann Moritz von Nassau-Siegen], o conde alemão que, contratado pela Companhia das Índias Ocidentais neerlandesas para governar o Brasil Holandês, chegou a Recife em 1637 e ali fundou sua ambiciosa Cidade Maurícia [Mauritsstad].


A prova clamorosa do sucesso da empreitada de Maurício de Nassau no Nordeste e da força de permanência de sua influência cultural-afetiva junto à população do Recife está, entretanto, no desaparecimento – quase imediato – de seu legado arquitetônico. É sintomático e curioso... Dispostos a apagar – sem vestígios – qualquer marca que remetesse ao período de dominação neerlandesa, os portugueses, ato contínuo à expulsão dos “invasores”, destruíram, de forma consciente, tudo quanto fora erguido pelos holandeses.

E não foram poucas as obras de engenharia encomendadas por Nassau, por meio das quais, de resto, disseminava os valores de sua formação protestante: com a pretensão declarada de transformar Recife em uma capital moderna e dinâmica, investiu na construção de Mauritsstad, cujos traçados urbanísticos ainda conformam os atuais bairros de Santo Antônio e São José, aterrou áreas alagadiças, drenou terrenos, abriu canais, construiu diques, ergueu pontes etc. Para si, mandou edificar dois palácios, Friburgo e Boa Vista, os quais cercou de monumentais jardins que, por sua vez, continham jardins botânicos e zoológicos.

Tudo isso – salvo uma ou outra ruína – perdeu-se. Não fosse a arte, sempre ela, e nada teríamos de material – de físico, concreto, palpável, visível – sobre os quase sete anos de governança de Nassau no Nordeste. É espantoso; milagroso – eu diria. Tudo foi ao chão, prédios inteiros, sólidos edifícios, frondosos palácios; e hoje, improvavelmente, são os desenhos e as pinturas de artistas viajantes os únicos guardiões daquele tempo; os derradeiros heróis ilustrados, senhores daquela história.


Jamais me parecerá pouco que um colonizador – um “invasor”, comandante frio de um exército acostumado a guerras e conquistas – tivesse a preocupação de contratar para sua comitiva, em pleno século XVII, um grupo de artistas; e isso com a clara intenção de documentar, para si, os cenários e os povos do Brasil.

Quando ouço alguém exaltar a de fato extraordinária Missão Francesa de Dom João VI – que, em 1816, fez vir ao Rio de Janeiro artistas como Debret, Taunay e Grandjean de Montigny, entre outros –, sempre me pergunto, sempre deslumbrado, sempre instigado: e Nassau, meu deus?; o que dizer da iniciativa de Maurício de Nassau!?

Sim, é evidente que havia muito de vaidade naquilo. O conde, cultíssimo, ao mesmo tempo bem-relacionado e ambicioso, não estava alheio aos costumes da aristocracia europeia, cujos gostos então já se voltavam para as artes, compreendidas também como um símbolo de status; e era natural que desejasse constituir uma coleção própria e, mesmo, acumular bens culturais para, num futuro incerto, presentear poderosos e lhes colher a proteção e as benesses.

Mas e daí?

Nassau era, antes de tudo, um amante das artes. Enquanto esteve no Brasil, entre 1637 e 1643, e a partir das poucas notícias de que dispomos sobre seus palácios em Mauritsstad, aventa-se que telas de Frans Post e Albert Eckhout lhes tenham decorado – com destaque – os salões mais importantes. Sabe-se que esses artistas eram então tratados com as melhores deferências e distinguidos – algo ainda incomum – como membros especiais daquela corte, e que almoçavam e jantavam à mesa do conde. Eram muito bem remunerados e, ainda que tivessem obrigações artísticas contratuais a cumprir, estimulados a produzir livremente e providos de todas as facilidades para tanto.

A ideia do mecenas moderno – o homem poderoso, hoje comum, quase banal, que financia criações artísticas generosamente – tem em Maurício de Nassau um de seus mais relevantes fundadores. E isso – repito – na década de 1640!


Venho de me dedicar longamente – por quase um ano – ao catálogo raisonné do pintor Albert Eckhout. Já conhecia a obra completa de Frans Post – publicada, com sucesso, pela editora em que trabalho – e era, como se nota, antigo admirador e entusiasta de Nassau. Sabia, porém, muito pouco de Eckhout.

Apesar das belíssimas paisagens de Post, creio [hoje posso afirmar] que nenhuma obra representa melhor o período holandês no Brasil e, portanto, as pretensões intelectuais de Nassau e o modo como compreendia e se relacionava com as culturas aqui de súbito reunidas que a de Eckhout; e isso por um motivo simples: ele foi o retratista oficial daquela corte e, com fabulosa originalidade e inegável habilidade técnica, pintou alguns óleos cuja observação é impactante mesmo para os padrões visuais correntes, e que representam e documentam um momento muito peculiar de transformação. Mais do que retratos das gentes, dos brasileiros, dos índios, dos negros, dos mestiços – o que, por si só, já significaria uma inovação espetacular –, são retratos do encontro entre esses povos, e se carregam de todas as consequências imediatas disto.

Que se tenha em precisa conta sempre o seguinte: Frans Post e Albert Eckhout foram os primeiros pintores viajantes que retrataram o Brasil; os pioneiros. É evidente, pois, que criaram sob um olhar condicionado, certamente contaminado pela busca do exótico e em perfeita consonância com a visão eurocêntrica segunda a qual tudo quanto estivesse do outro lado do Atlântico seria excêntrico e genericamente definido por Novo Mundo.

Uma vez que fosse o retratista de Nassau e que se dedicasse especialmente a representar as gentes recém-chegadas que compunham a novíssima população brasileira, é em Eckhout – no trabalho deste pintor – que se revelam de maneira mais candente os preconceitos, as tensões e as expectativas daqueles encontros.

Aqui, vou me dedicar, brevemente, à Mulher africana do artista, este monumento à sexualidade e à fertilidade ou, mais formalmente, à interação entre as gentes e à fluidez entre os limites étnicos; quadro que avalio ser uma obra prima. Afora o fato de que a figura seja a precursora – ainda não reconhecida e valorizada – do modelo de silicone em voga nos seios [prestes a explodir] de algumas moças da tevê, representa, por meio de seu corpo vigoroso, mas, também, de suas [breves] vestes e adereços, e do panorama de fundo, a reunião idealizada de vários povos do planeta em um ambiente tropical, e simboliza, de uma maneira não menos fantasiosa, o projeto colonial de Mauricio de Nassau e o jeito pacífico, ameno, miscigenado, firme mas discreto, como desejava impor o seu domínio. (Tudo seria maravilhoso, nas desde que sob seu controle).


Trata-se – não nos esqueçamos – de uma negra africana e, pois, de uma escrava. Tal qual Eckhout, no entanto, ela é igualmente estrangeira – o que os aproxima. A composição da tela é, como se diz, “uma viagem”, e agrupa, por exemplo, num litoral claramente brasileiro [em que índios pescam à praia], um cesto transbordante de frutos tropicais, uma saia e um chapéu africanos característicos e um cachimbo tipicamente europeu, assim como podem ser também classificados os brincos e o colar de pérolas burgueses.

O conjunto resulta numa saborosa mistura – francamente artificial – de elementos de diversas partes do mundo, espécie de Epcot Center da época, que se destinaria, especulemos, a forjar a identidade cultural do futuro sob as rédeas dos holandeses e, especificamente, de Nassau. A criança do quadro, o filho, ouso dizer, indica – nada a ver com o norte malicioso que dá à espiga de milho – este porvir de dupla nacionalidade harmônica, ao segurar o cereal, próprio às Américas, e o pássaro identificado como a “ave do amor africana”. Era a paz – a união – permitida e estimulada pela generosa matriarca da humanidade, a Sra. Europa, e concedida, como uma graça, pelo Governador-Geral, o conde Maurício de Nassau.


Estou entre aqueles que consideram que os maiores personagens históricos brasileiros só logram de fato a grandeza quando enfim homenageados por um enredo de escola de samba carioca. É verdade que nem sempre funciona, como nos lembram os desfiles que reverenciaram figuras como Beto Carrero, Chico Recarey etc. Exceções terríveis que confirmam a deliciosa regra.

Nassau, não obstante fosse o “invasor” e, logo, o inimigo, aquele que desafiou a ordem portuguesa e o orgulho da tradição conquistadora lusa, brilhou, direta ou indiretamente, em dezenas de enredos que cruzaram a passarela ao longo das décadas – os do Império Serrano em 1959 e 1968, o da Vila Isabel em 1972 [obra de Martinho da Vila, que, aliás, refere-se ao conde, com imensa felicidade, como “Bom Nassau”], o da Beija Flor em 1982, o da São Clemente em 2004, entre outros – e que resultaram em alguns sambas memoráveis.

Ao menos um deles é supremo: aquele – “Pernambuco, Leão do Norte”, de Silas de Oliveira – com que o Império Serrano foi vice-campeão do carnaval de 1968. Trata-se de uma letra concebida sob a visão dos portugueses, dos vencedores, e que dignifica a luta daqueles que expulsaram os holandeses e restabeleceram o controle patrício do Nordeste. No entanto, a despeito do tom de glorificação à reconquista triunfal, o samba-enredo, bem a seu início, reconhece e distingue – num verso tão curto quanto elegante – o nome e a honra de Nassau:

“Esta admirável página
Que o passado deixou
Enaltece a nossa raça
Disse um famoso escritor
Que Maurício de Nassau
Na verdade foi um invasor
Muito genial (...)”

Não poderia ser mais justo.

["O 'bom' Nassau: um invasor muito genial"; O Amarello #4, 2010].

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O Amarello #4

Será nesta quinta-feira [9 de dezembro], em São Paulo, o lançamento da quarta edição do fanzine Amarello, para o qual, mais uma vez, colaboro. O tema - colonialismo - parece, de início, árido, mas abre muitas possibilidades e me permitiu, por exemplo, escrever sobre um de meus personagens favoritos: o grande Mauricio de Nassau, aquele que, segundo Silas de Oliveira, "foi um invasor muito genial".

Abaixo, o convite. Estarei lá.